sábado, 19 de setembro de 2009

Primeiros Olhares, por Davi Kolb (curador)

Por que propor uma mostra com os filmes de estreia de 12 diretores contemporâneos que hoje em dia estão com os seus nomes sedimentados ou se sedimentando dentro de um panorama mais amplo do cinema mundial (leia-se o circuito de festivais de cinema pelo mundo e as salas comerciais de cinema)?

O pressuposto básico é entender a carreira destes 12 diretores (na verdade, são 13 diretores, pois Joel e Ethan Coen compõem uma das duplas mais bem-sucedidas do cinema contemporâneo) de modo retrospectivo.  Isto é, ao analisarmos Gosto de sangue, por exemplo, dos citados irmãos Coen, podemos entender como no primeiro filme eles já trabalhavam com a ideia de revisitar um cinema americano de gênero e revigorá-lo com marcas autorais. Esta maneira de rever os gêneros aparece em futuros trabalhos como Fargo (1996) e O homem que não estava lá (2001), que retrabalham os gêneros policial e noir para contar a história de dois sujeitos metidos a espertalhões que querem aplicar um golpe e acabam se dando mal, ou, ainda, E aí, meu irmão, cadê você? (2000), uma livre adaptação da Odisseia de Homero, na qual os Coen fazem uma releitura da epopeia através dos gêneros de aventura e fuga.

O filme Mundo grua (1999), do argentino Pablo Trapero, retrata a agonia social, política e econômica que assolava (e continua assolando) a Argentina através do seu protagonista Rulo, que está à procura de trabalho e quando encontra torna-se, aos 45 anos, operador de um guindaste (elemento de uma sociedade industrializada). Trapero já declarou que lhe interessa muito o mundo do trabalho e no segundo longa-metragem, O outro lado da lei (2002), ele retoma essa questão ao trazer um jovem de uma cidade do interior para a capital, onde consegue um emprego na polícia e perde a sua “inocência” em meio a um mundo de corrupção. Outra marca do cinema de Pablo Trapero é o que comumente se designa cinema humanista. Um cinema próximo ao de Walter Salles, por exemplo, na maneira como os personagens são desenhados: solidários, dotados de idiossincrasias, abertos aos erros, aos desvios de caminho e dispostos a dar uma segunda chance.

Voltando ao final dos anos 80, mais precisamente ao ano de 1988, em Hong-Kong, Wong Kar-wai lançava o seu primeiro longa-metragem, Conflito Mortal (tradução do inglês As tears go by),  filme de gângster (nuançado pelo melodrama) cujo mote dava a tônica da história do seu protagonista Wah (Andy Lau), líder de uma gangue, dividido entre o amor por sua prima Ah-Ngor (Maggie Cheung) e a proteção incondicional ao seu irmão, Mosca (Jackie Cheung), um dos capangas da gangue, que só faz atrapalhar a vida do irmão mais velho. Mesmo num filme codificado pelas regras do filme de gênero, Wong Kar-wai consegue imprimir algumas marcas que se repetirão nos filmes subsequentes, vide as músicas que servem de leitmotiv para o estado emocional das personagens, o uso de aparatos na frente da lente da câmera, o trabalho de arte com seu colaborador contumaz, William Chang, que carrega o filme de azuis, vermelhos e amarelos contrastados, as sequências de viagem e deslocamento (barco, ônibus, carro), as sequências noturnas com letreiros neon, as ruas molhadas e a cidade pulsando... Tudo isso cria uma atmosfera muito particular e facilmente reconhecível nos outros filmes de Wong Kar-wai, incluindo seu último filme My blueberry nights (2007), sua primeira produção estadunidense.    

Outra pergunta válida a respeito do recorte da mostra é a seguinte: por que trabalhar com 12 diretores que estrearam entre 1980 e 2000? Por que exatamente esse intervalo de 20 anos?

Se analisarmos retrospectivamente a obra do dinamarquês Lars von Trier, podemos ver que seu primeiro filme, The element of crime (1984), ecoa em seus outros  longas, contudo de uma maneira menos objetiva do que os diretores analisados acima. Em parte porque a obra de Von Trier  desenvolve-se, quase sempre, através de trilogias que não possuem necessariamente relações estéticas entre si, como é o caso de Golden heart, que engloba Ondas do destino (1996), Os idiotas (1998) e Dançando no escuro (2001).  Os idiotas é o único filme que recebeu o certificado do manifesto Dogma 95 (cujo texto contém 10 “obstruções” referentes ao fazer cinematográfico, dentre elas, o som nunca pode ser captado desvinculado da imagem e vice-versa e são inaceitáveis os filmes de gênero) lançado por Lars von Trier e Thomas Vinterberg.

O último filme de Lars von Trier lançado mundialmente no festival de Cannes, O anticristo (2009), é o 12° longa-metragem na carreira do diretor (se contarmos o longa Cada um com o seu cinema (2007), projeto de 33 episódios de que faz parte Occupations, dirigido pelo dinamarquês). Uma carreira que começa na infância com uma câmera de super 8 mm dada pelos pais, continua se desenvolvendo na universidade com dois curtas premiados em festivais pelo mundo, alcança o longa-metragem no ano de 1984 e chega a 2009 com uma série de projetos em andamento. Uma carreira tortuosa, prolífica, provocadora, agressiva, manipuladora, sem dar fundamentalmente uma conotação negativa aos adjetivos conferidos à carreira do cineasta. Ver The element of crime 25 anos após a sua feitura, com todas as referências e o repertório que já acumulamos sobre Lars von Trier, é um exercício semelhante a de ir ao cinema hoje para assistirmos O anticristo. Uma experiência nova, mas embasada no que já conhecemos, uma volta ou realmente um primeiro olhar.

Se Lars von Trier é conhecido de nossas plateias, pelo menos considerando as salas de exibição que não projetam apenas o mainstream nacional e estrangeiro, o tailandês Apichatpong Weerasethakul continua sendo negligenciado pelos programadores de cinema no Brasil, mesmo após ter vencido o prêmio da mostra paralela Un Certain Regard  do festival de Cannes de 2002 com Blissfully yours e o Grande Prêmio do Júri de 2004, do mesmo festival, com o filme Tropical malady. As láureas internacionais não garantiram visibilidade ao diretor. Afora os festivais e mostras de cinema (como o Festival do Rio e a Mostra de São Paulo) por essas bandas de cá.

É bom ressaltar a idade de Apichatpong, 39 anos, para um realizador de filmes considerado jovem. Por outro lado, já tendo 5 longas no currículo, rodou uma série de festivais pelo mundo e foi alçado pela nossa crítica especializada (entenda-se as revistas eletrônicas, no geral, mais atentas e abertas às cinematografias estrangeiras pouco “acessíveis” e aos jovens realizadores) como uma das maiores promessas surgidas nesta última década. É no mínimo uma grande perda de diversidade não podermos conferir os filmes do tailandês nas telas de cinema –  claro que sempre existe a opção da compra de DVDs importados (caros!) ou o download dos filmes (assunto espinhoso!).

A oportunidade que o público terá para assistir Mysterious object at noon (2000) é especial por conta desse cenário apresentado. Mesmo o espectador que já teve algum contato com a obra de Weerasethakul vai poder, através do contexto de uma mostra (uma retrospectiva, um conjunto de filmes), associá-lo e entendê-lo a partir de outros filmes que dialogam por aproximação, oposição, ou até mesmo por conta de um mesmo momento histórico entendido de modos diferentes em lugares distintos do mundo. A chance de exibir os longas de maneira conjunta é importante, porque, de uma maneira geral, assistimos aos filmes de maneira estanque.

Por que a lista com 12 diretores? Por que estes 12 diretores? As respostas, em princípio, parecem fáceis, afinal há uma limitação inerente à produção de uma mostra de cinema. É óbvio que não é possível exibir 100 filmes em 1, 2 ou 3 semanas. E mesmo que fosse possível, uma lista de 100 filmes tampouco seria definitiva, não abarcaria o número de cineastas relevantes que estrearam nos últimos 20 anos.

Nomes como Jim Jarmusch, Permanent vacation (1980), Hou Hsiao-hsien, Cute girl (1980), Spike Lee, Joe´s bed-stuy barbershop: we cut heads (1983), Alfonso Cuarón, Sólo con tu pareja (1991), Tsai Ming-liang, Rebels of neon god (1992), Paul Thomas Anderson, Sydney (1996), logo vêm à cabeça. E ainda é possível expandir a lista. Indefinidamente.

A visão da carreira de 12 diretores em retrospectiva a partir da obra inaugural, associada à contemporaneidade desses nomes, que já desenvolveram uma obra com marcas autorais nos últimos 30, 20, 10 anos, faz esse balanço do cinema mundial que se renova dia a dia e sobrevive a todas as mortes anunciadas.