sábado, 19 de setembro de 2009

O primeiro longa morreu... longa vida ao primeiro longa, por Eduardo Valente

Eduardo Nunes, Felipe Bragança e Marina Meliande são três jovens realizadores brasileiros formados em escola de cinema (todos pela UFF), cujos curtas-metragens receberam vários importantes prêmios nos festivais nacionais e viajaram bastante por alguns dos mais prestigiosos festivais de cinema internacionais. Eduardo é de uma geração levemente anterior, tendo realizado seus curtas entre os anos de 1994 e 2001.Felipe e Marina fizeram os seus filmes entre 2003 e 2008. E o que os três têm em comum,  além da carreira bem sucedida de seus curtas? O fato de que, enquanto esperavam por melhores condições financeiras para a realização de seus longas de estreia, eles aproveitaram para... fazer o seu primeiro longa-metragem.

Pois é essa enorme diferença de perspectiva que separa a realidade de produção de imagens nos dias de hoje daquela que vivenciou a enorme maioria dos realizadores exibidos aqui nesta mostra Primeiros Olhares, independente da distância geográfica ou estética que separa todos eles. O fato é que, em 2009, produzir o primeiro longa-metragem já não é mais o que era, seja enquanto possibilidade de realização, seja mesmo enquanto fetiche na cabeça de cada um dos realizadores iniciantes de cinema. Claro que o motivo principal para essa mudança tem nome e sobrenome: tecnologia digital, que levou para dentro da casa de aspirantes a cineastas do mundo todo a possibilidade de dominar os meios de produção, substituindo caros equipamentos, insumos (principalmente a película) e dinâmicas (equipes numerosas para operar os equipamentos). Não que antes não houvesse modelos alternativos ao mais tradicional de grande produção. Vários deles foram exercitados por alguns dos cineastas da mostra em seus filmes aqui exibidos. Mas nenhuma dessas formas alternativas  são comparáveis a uma realidade como esta. Hoje um cineasta precisa apenas de uma câmera tão simples que seus meios de vida pessoais permitem a ele que a compre (podendo inclusive ser uma máquina fotográfica digital com memória para vídeo ou mesmo um celular), e de um equipamento de edição que computadores pessoais também não tão caros podem permitir o acesso.

Com essa nova configuração, me parece claro que a principal questão que muda é menos de ordem estética (embora também seja, de várias maneiras), mas principalmente essa intimidade que está sendo criada entre os realizadores e o fazer audiovisual no novo milênio. Sim, porque se Nunes, Bragança e Meliande são exemplos de cineastas que se aproveitaram das condições para realizar seus primeiros longas em modelos de produção só possíveis nesta nova realidade, ainda assim são representantes de uma geração que, mesmo que jovem, chegou a conhecer uma moviola como ferramenta de trabalho de edição, e que em algum momento pensou as dinâmicas e os modelos de sua produção dentro de modelos anteriores. Mas o que podemos pensar ou esperar da geração seguinte, essa que cresce com acesso direto aos meios técnicos para realizar um longa-metragem antes mesmo de entrar numa escola de cinema ou afins? Não por acaso, já começamos a ouvir falar de realizadores que fazem seus primeiros longas com 14, 15 anos de idade. Como seria possível achar que poderemos pensar um ambiente audiovisual da mesma maneira depois disso?

Um outro caso que vale ser citado aqui para pensarmos as implicações destes novos tempos é o dos irmãos Luiz e Ricardo Pretti, ambos cariocas radicados no Ceará. A prática dos Pretti nos mostra como a facilidade do acesso aos meios muda uma série de outras coisas para além da simples realização. Pois se em menos de dez anos de prática cinematográfica, os Pretti já fizeram mais de três longas-metragens (os números são imprecisos porque podem estar sendo atualizados a cada momento), a grande diferença é menos esta hiper-produtividade e muito mais a maneira como eles mesmos enxergam o processo. Num festival de cinema recente, Luiz Pretti disse num debate que ele não achava realmente importante a possibilidade daqueles longas serem ou não exibidos publicamente, porque eles pensam nesses filmes menos como obras prontas e muito mais como parte de um processo de aprendizado da realização de cinema. Com isso, há uma clara dessacralização do estigma do tal “primeiro longa”, que deixa de ser aquele objetivo a princípio distante e desejado e passa a fazer parte da prática cotidiana.

Os irmãos Pretti e os seus colegas de geração e prática no cinema cearense recente nos relembram ainda que a revolução em curso está longe de se referir apenas a uma questão de acesso aos meios de produção. Afinal, no Ceará sempre foi muito difícil conhecer a produção cinematográfica contemporânea de ponta (como a da maioria dos cineastas exibidos na mostra Primeiros Olhares) pelo simples fato de que o acesso a esses filmes era completamente impossível nos cinemas, e bastante complicado mesmo em VHS ou DVD (que precisariam ser importados a custos altos). Hoje, com a troca de arquivos na internet, uma realidade cada vez mais incontornável, um grupo de cinéfilos inveterados fora de um grande centro de exibição cinematográfica, como é Fortaleza, pode criar o seu próprio cineclube com uma abrangência estética e geográfica que nem se podia sonhar há dez anos. Assim, não é só que os irmãos Pretti podem aprender a filmar sem ir a nenhuma escola: eles também podem ter um curso completo de estética e história do cinema. De uma maneira absolutamente inesperada, talvez o cinema que saia deste grupo cearense tenha mais relação com um Apichatpong Weerasethakul ou um Hou Hiao-hsien (para ficarmos com dois cineastas que nunca tiveram suas obras lançadas no Brasil em cinema ou DVD) do que com qualquer outro realizador nacional ou do cinema internacional que chega a nossas salas.

No meio desse verdadeiro tsunami de mudanças de paradigmas, é claro que mal nos sentimos capazes de olhar para daqui a seis meses com qualquer seriedade de prognóstico do que todas essas mudanças nos trarão em termos estéticos ou práticos da produção cinematográfica mundial. O sentimento maior é de que tudo ainda é muito fluido e que as mudanças estão longe de terminar por aqui. Portanto, se o ambiente de hoje é mesmo o de um “admirável mundo novo”, a única coisa que parece clara é que a postura mais saudável é celebrar o que há de vibrante e potente em tudo que nos cerca – mesmo que, para um já dinossauro como eu, fique sempre um sentimento um pouco opressivo de que a obsolescência é muito mais palpável do que eu gostaria de admitir.

Eduardo Valente, 34 anos, é cineasta e crítico (editor da Revista Cinética www.revistacinetica.com.br). Seus três curtas e seu primeiro longa (No Meu Lugar, 2009) foram filmados em película, sendo os dois primeiros curtas montados numa moviola. Não possui câmera digital, equipamento de edição nem sabe baixar filmes da internet. É um homem do século passado, mas adora este em que vivemos.