sábado, 19 de setembro de 2009

Do maneirismo ao mito de Proteu (1980-2000), por Luiz Carlos Oliveira Jr.

Na primeira metade dos anos 1980, era possível identificar, a partir dos filmes oferecidos nesta mostra, duas posturas estéticas antagônicas se desenvolvendo no cinema. A primeira está relacionada a cineastas (Lars von Trier, irmãos Coen, Jim Jarmusch) que claramente trazem embutida em sua mise en scène uma leitura – que não é a mesma para cada um deles – da história do cinema, do seu passado, do peso de sua idade. A outra postura diz respeito a um cineasta (Hou Hsiao-hsien), que realizou seus primeiros filmes como se nunca tivesse tomado conhecimento da história pregressa do cinema. Longe de ser uma sistematização facilitadora, essa dicotomia introduz alguns dos aspectos que, originados naquele momento-chave, seriam determinantes para a história recente do cinema.

O que os três primeiros cineastas citados possuem em comum é a consciência de ter chegado depois: assim como a perfeição da forma clássica já tinha sido atingida e superada havia muito tempo, a energia e a criatividade do cinema moderno tinham igualmente se esgotado. A forma que resulta dessa constatação, portanto, é uma forma tardia, e, como tal, manifesta-se basicamente de duas “maneiras”: pela sobrecarga ou pelo retraimento. De um lado, a tensão formal, a hipérbole, a distorção, a anamorfose, a arte fambloyante, vertiginosa, a narrativa em torvelinho (Von Trier, irmãos Coen). Do outro, a imobilidade, a duração extenuante, o formalismo desafectado, o enredo desdramatizado, a narrativa rarefeita, ralentada (Jarmusch). Percebendo essa nova realidade do cinema nos anos 1980, os críticos dos Cahiers du Cinéma a definiram como um “momento maneirista”, em analogia ao que ocorrera nas artes plásticas após o fim do Renascimento[1].

Em The Element of Crime (1984), Lars von Trier mergulha numa narrativa tão retorcida sobre si mesma que a própria noção de ponto de vista passa por uma mise en abîme completa. O desejo de ultrapassar o caos da matéria e chegar ao segredo que está por trás da perfeição da forma conduz a uma única e incontornável conclusão: no fundo das coisas, no cerne da mente criadora de tudo, há o vazio. O filme é uma perplexa contemplação desse vazio, um olhar egresso diretamente do nada. Fisher, o protagonista, luta inutilmente para decifrar o caos, compreender a mente do assassino em série, ter acesso ao plano magistral, ao desenho sublime, ao “elemento do crime” sobre o qual o professor Osborne discorre em uma conferência a que ele assiste repetidamente num pequeno monitor. Ele é o representante de Von Trier na diegese: um olhar que cava o mais fundo que pode no barroco wellesiano, somente para se deparar, mais de quarenta anos depois de Cidadão Kane, com um labirinto de signos em que a significação é justamente aquilo que se perde. A fotografia adquire um tom estranhamente estilizado, não é o preto-e-branco da reverência ao passado clássico, nem o colorido histérico do presente adoecido, mas uma espécie de monocromia agonizante, um bronze pomposo e atormentado ao mesmo tempo. O som cria uma certa dissociação entre as vozes e os corpos: as vozes, assim como o olhar implicado na mise en scène, vêm de longe, do espaço dos mortos, e portanto chegam ao filme com um eco esquisito, um timbre diferente.

Para os irmãos Coen, que também fazem seu primeiro longa-metragem em 1984, o passado do cinema (e do seriado televisivo, do desenho animado...) não é propriamente um abismo, mas um imenso parque de diversões. Em Gosto de Sangue, o cinema de gênero – o thriller, o noir, o western – é transplantado para uma economia figurativa regulada, ou melhor, desregulada por uma profusão de estripulias cartunescas. A violência, embora abundante, é desprovida de dimensão moral. Grandes caricaturistas que são, os Coen estão menos interessados na reflexão e no drama do que na descrição detalhada das figuras. Eles abandonam radicalmente o romantismo melancólico que, na década de 1970, estava ligado à mitologia do cinema clássico; exibem um riso sardônico diante da morte dos gêneros, em atitude contrária tanto ao classicismo nostálgico de um Peter Bogdanovich (A Última Sessão de Cinema, Lua de Papel) quanto ao luto mais contundente de um Wim Wenders (Nick's Movie, O Estado das Coisas).

O mundo de Jim Jarmusch deriva da mesma saturação que molda o cinema dos Coen. A diferença é que em Jarmusch esse excesso desemboca na banalidade, na falta de trama, na perambulação vagabunda de um personagem cujo único território é seu próprio corpo. Permanent Vacation (1980) é um filme composto de longos hiatos deambulatórios, de personagens sem espessura psicológica, de cenas sem contorno dramático. É um passeio por espaços desertos, ruínas, becos, conduzido por um jovem sem rumo, de visual bebop anacrônico. A estilização é questão de gestual, de poses – um self-service de referências tiradas do cinema moderno, da cultura pop, da arte de vanguarda, etc. 

Paralelamente a tudo isso, Hou Hsiao-hsien realiza seus primeiros filmes. Há nostalgia? Sim, mas não é nostalgia do passado do cinema. É a nostalgia de alguma experiência vivida, de alguma passagem da juventude do diretor. Ou então a nostalgia do presente, do instante que passa e não volta. A mise en scène de Hou é a escritura dessa efemeridade, e se constrói pela captura de toda forma de movimento presente no mundo (trem, moto, carro, pessoas). O mundo se torna visível por meio do movimento, e este se faz, assim, não apenas um elemento estético, mas uma verdadeira forma de conhecimento. Já em seus primeiros longas, sobretudo em The Boys from Fengkuei (1983), Hou parece se situar na extremidade de toda uma ideia moderna do cinema que repousa sobre o uso recorrente do plano geral, da profundidade de campo, do fora-de-campo, da redução narrativa, da abertura para o mundo, da permeabilidade a tudo que “não pertence” ao filme. Mas a modernidade do cinema de Hou, se é que devemos assim defini-la, nasce de si mesma, ou seja, não resulta de uma sucessão histórica: o universo de onde sua obra desponta é praticamente virgem de passado cinematográfico[2]. Aquele barroco (Von Trier), aquela vacância (Jarmusch) e aquela anarquia figurativa (irmãos Coen) que derivava da dissecção da forma clássica e/ou da “ausência” do espírito moderno são assuntos estrangeiros à estética de Hou, cuja modernidade se define por seu primitivismo: ele troca o quadro pelo campo (notar a diferença: o quadro é um retângulo de imagem completo em si mesmo, enquanto o campo é um fragmento volúvel do mundo), a cronologia pela duração, retorna em grande parte à atitude dos pioneiros do cinema, isto é, à simples apreensão sensível do mundo em movimento, um mundo ao qual ele, Hou, pertence, está imerso, não o podendo representar senão de um ponto de vista e de um instante infinitamente passageiros. 

Os caminhos abertos no começo da década de 1980 vão ganhando novas feições ao longo dos anos 1990, suscitando questões que deslanchariam de vez nos anos 2000. Aos poucos, vão surgindo filmes que tornam impossível a distinção entre um cinema que parte da história do cinema e um cinema que reencontra o acesso direto ao mundo. A diluição das fronteiras entre o real e o imaginário é acompanhada de uma diluição das fronteiras entre ficção e documentário. A mudança se dá nos próprios materiais que se põem à disposição dos cineastas: o que eles têm diante da câmera é o mundo ou apenas seus prolongamentos espectrais? O plano para esses cineastas é uma unidade de dramaturgia ou um exercício do olhar? O que está por trás desse plano é uma operação do pensamento ou um afeto momentâneo? Um conceito ou um sentimento? Ou os dois? Ou o intervalo entre os dois? E onde foram parar as antigas ferramentas da mise en scène?

A dúvida levará o crítico Jean-Marc Lalanne a escrever em 2002 um texto intitulado “Que plano é esse?”, pergunta que Olivier Joyard repetirá no ano seguinte[3] . Observa-se um abandono da matéria sólida em favor de um universo aparentemente líquido, uma dissolução do plano, unidade de base do edifício fílmico, para pôr no seu lugar “um fluxo esticado, contínuo, um escorrer de imagens no qual se abismam todos os instrumentos clássicos mantidos pela própria definição da mise en scène: o quadro como composição pictural, o raccord como agente de significação, a montagem como sistema retórico, a elipse como condição da narrativa” (Lalanne).

Os críticos franceses, que adoram dualismos, tiveram diversão de sobra nesta década que agora vai chegando ao fim. Stéphane Bouquet foi o primeiro: retomando um debate que opunha, na pintura do século XVII, os partidários do desenho aos amantes da cor, ele distinguiu duas correntes decisivas no cinema contemporâneo, representadas, respectivamente, pelos estetas do plano (interessados em pôr em obra um saber, uma lógica, uma ordem do mundo – François Ozon, por exemplo) e pelos estetas do fluxo (mergulhados na desordem empírica das aparências, na confusão dos sentidos, na indistinção, na intercambialidade das coisas – Hou Hsiao-hsien, Claire Denis, Gus Van Sant, Wong Kar-wai[4]) . Olivier Joyard preferiu falar de uma escolha entre “eterno maneirismo” (reciclagem de formas, restauração de mitos) e “cinema-karaokê” (a história do cinema como uma “juke-box de imagens” de que os cineastas podem se servir como o cantor de karaokê se serve de fundos musicais que não criou, mas sobre os quais coloca a voz). Ele defendeu a necessidade de entender a imersão do cinema no regime geral das imagens: não se pode tentar isolar o cinema do manancial audiovisual, não se pode deixar de “vê-lo influenciar-se por seus vizinhos televisuais, vídeo-lúdicos ou artísticos”[5]. Já Patrice Blouin afirmou que a única escolha possível se deu entre um “cinema post-mortem” e um cinema “pré-puberdade”[6].

Stéphane Delorme criará uma alternativa interessante. Para ele, não se trata de optar entre um ou outro lado da moeda: o que singulariza o cinema contemporâneo é justamente a recorrência de personagens e imagens perdidos entre dois mundos, ocupando o intervalo entre eles, ou ainda, flutuando em uma espécie de “inter-mundo”[7]. O cinema contemporâneo, na ótica de Delorme, estaria empenhado na abolição de toda fronteira, “justo à embriaguez”. A ideia é fértil – e podemos associar a ela o fato de que assistimos hoje à abolição daquela que talvez seja a última das fronteiras: a do natural (como aquilo que se sustenta/produz a si mesmo) e do artificial (como aquilo que precisa ser produzido); vemos o artificial se autoproduzindo e o natural sendo produzido.

Nesse contexto, é absolutamente compreensível que Claire Denis trate o real e o onírico com imagens de mesmo teor ontológico (cf. Trouble Every Day, O Intruso), que misture cinema fantástico com o mais cru dos realismos ao ponto da indistinção entre uma coisa e outra, e que filme corpos indecisos entre uma realidade carnal e um estado vaporoso.

Jia Zhang-ke também aborda de frente a diluição de uma fronteira: ao pensar as transformações da China contemporânea em paralelo às transformações de seu cinema, ele transita dos planos-tableaux (um tanto jarmuschianos) de seus primeiros filmes à fluidificação da mise en scène e de seus materiais observada de O Mundo em diante. Em seu melhor filme, Em Busca da Vida, ele filma os pesados blocos de concreto da antiga economia comunista sendo demolidos para dar passagem aos fluxos de capital da nova economia globalizada, num registro que oscila do mais documental ao mais ficcional (ficção-científica inclusa). A fronteira de Gus Van Sant, por sua vez, já é outra: num limbo entre a adolescência e a vida adulta, o corpo se acha envolvido ora num movimento fluido e voluptuoso, ora numa repetitiva marcha rumo a uma morte que já se deu antes mesmo do filme começar (é a tragédia sem pathos em Gerry, Elefante, Last Days, Paranoid Park).   

Mas resta ainda um cineasta que somente com muita dificuldade – e ao preço de alguma imprudência – se deixa encaixar neste ou naquele dualismo ou conceito. Esse cineasta é Apichatpong Weerasethakul, e seu primeiro longa-metragem se chama Objeto Misterioso ao Meio-dia (2000).

Ora, por que meio-dia? Primeiro porque é justamente o instante que divide o dia em dois, da mesma forma que os filmes de Apichatpong se partem ao meio, possuem um a.m. e um p.m., interrompem uma história para começar a contar outra que na verdade é a mesma. Segundo porque no mito de Proteu (pastor de Netuno, velho e profeta, mensageiro e intérprete das coisas e segredos antigos), cujo sentido refere-se aos segredos da natureza e aos estados da matéria, meio-dia era “a hora exata de completar e dar vida às espécies surgidas da matéria já preparada e predisposta”[8]; era o próprio instante da criação. O que Apichatpong tem diante de si, ao meio-dia, é a matéria desimpedida e livre, que pode assumir qualquer forma que quiser, e depois mudar, e mudar, e mudar – até retornar finalmente à forma original. Objeto Misterioso ao Meio-dia passa por todas as formas possíveis, documentário, enquete, teatro itinerante, conto fantástico, empirismo selvagem, bricolagem, filme-ensaio – mas toda vez que alguém se aproximar do filme querendo defini-lo ou estagná-lo em uma dessas formas, ele assumirá outras, indo de mudança em mudança novamente. Se alguém precisasse da ajuda de Proteu, a única maneira de consegui-la seria atar-lhe as mãos e acorrentar-lhe o corpo: “Então Proteu, forcejando por liberdade, transformava-se em toda sorte de formas estranhas”. O cinema de Apichatpong, igualmente, é o que não se pode aprisionar em uma única forma.

Apichatpong se coloca, desde seu primeiro filme, como um artista da natureza, um artista que procura falar a linguagem nativa do espaço-tempo. “A Natureza é um objeto enigmático, um objeto que não é inteiramente objeto; ela não está inteiramente diante de nós. É o nosso solo, não aquilo que está diante, mas o que nos sustenta” (Merleau-Ponty). “A Natureza está sempre no primeiro dia” (Hegel): por conseguinte, o cinema de Apichatpong é sempre um primeiro olhar.

Luiz Carlos Oliveira Jr. Crítico de cinema e pesquisador, editor da revista Contracampo.com.br

1 Cf. “Le cinéma à l'heure du maniérisme”, dossiê realizado nos Cahiers du Cinéma nº 370, abril de 1985.
2 Ver Jean-Michel Frodon, “En haut du manguier de Fengshan, immergé dans l'espace et le temps”, em Hou Hsiao-hsien, Paris: Ed. Cahiers du Cinéma, 1999.
3 Em Cahiers du Cinéma nº 569 e 580, respectivamente.
4 Ver “Plan contre flux”, Cahiers nº 566.
5 “Contre la mort du cinéma”, Cahiers nº 574, dezembro de 2002.
6 “Acnée et arachnée”, Cahiers nº 569.
7 “Les lois de l'affection”, em Cahiers du Cinéma, fevereiro de 2006. O texto é o último artigo (e o único realmente vigoroso) de um dossiê que buscou sistematizar, sob o conceito um tanto vago de “cinema sutil”, as transformações que ocorreram no cinema nas últimas duas décadas. Esse dossiê sobre “cinema sutil” de certa forma tentou ser para os anos 2000 o que o dossiê sobre maneirismo havia sido para os anos 1980. Mas vale frisar que não conseguiu nem passar perto disso.
8 Ver Francis Bacon, A sabedoria dos antigos, São Paulo: Editoria Unesp, 2002, pp. 52-54.