sábado, 19 de setembro de 2009

Olhares que reconfiguram fronteiras, por Erly Vieira Jr.

Globalização, modernidade líquida, cultura de consumo, rede, sociedade de controle, pós-moderno, pós-colonial, império, capitalismo transnacional... é gigantesca a variedade de termos (uns já bem desgastados, outros na crista da onda) cunhados para designar as transformações ocorridas no contexto global das últimas quatro décadas, cada qual vinculado a uma corrente de pensamento distinta. Diferenças à parte, pelo menos uma coisa todos esses termos têm em comum: a urgente necessidade de tentar radiografar o atual momento do capitalismo global, que é bastante diferente daquela “modernidade 1.0” que nos foi ensinada pelos livros escolares.

Trata-se de um novo contexto, em que a informação e a imagem passam a ser as mais valorizadas mercadorias, e que as principais forças no jogo político e socioeconômico não são mais os estados-nação, mas sim os grandes conglomerados multinacionais. Categorias como espaço e tempo, bem como a dicotomia real/ficcional passam a ser reconfiguradas, num processo de aceleração que é intensificado pelas novas tecnologias de informação e comunicação. Em lugar da divisão estanque do planeta entre um “primeiro” e um “terceiro mundo” (embora a distinção entre dominantes e dominados nunca cesse de existir), temos um panorama em que economias emergentes descentralizam o eixo Europa-América do Norte, para constituírem uma sociedade globalmente interconectada, em que os status de cidadão e consumidor (sempre insaciável) praticamente se tornam sinônimos.

Aqui, a própria noção de identidade cultural assume-se como um processo contínuo, em que as tradições locais dialogam com fluxo cada vez maior de informações e imagens que atravessa fronteiras nacionais (basta pensarmos no hip hop: ao mesmo tempo em que seus principais elementos, como o rap, o grafite, o visual adidas e a breakdance estão espalhados pelas diversas regiões do planeta, essa cultura se hibridiza com as particularidades, discursos e referências musicais locais, num processo de contínua remixagem simbólica – e o mesmo pode ser dito, em menor escala, de outras culturas contemporâneas, como a rave, o indie e o emo, entre outras). Daí a ideia de “comunidades de sentimento transnacionais”, alternativa proposta pelo indiano Arjun Appadurai, em substituição ao conceito do estado-nação. Para Appadurai, num contexto em que o imaginário global é incessantemente alimentado pelas migrações territoriais e pelos mass media (incluído aí o cinema), os laços entre indivíduos seriam cada vez mais constituídos por uma série de interesses que ultrapassariam barreiras étnicas e territoriais, remodelando fronteiras também imaginadas. Cabe aqui recordar o que escreveu Andréa França, em seu livro Terras e fronteiras no cinema político contemporâneo (2003): o cinema inventaria “espaços de solidariedade transnacionais, que ensejam uma espécie de adesão silenciosa”.

Um silêncio bastante ruidoso, eu me arrisco a dizer. Afinal, se levarmos em conta a pluralidade de questões socioculturais e estéticas que os filmes presentes nesta mostra têm em comum, conjugando olhares afiados sobre a realidade que nos cerca, percebemos uma série de afinidades que realmente transbordam fronteiras nacionais. Inclusive, o sentimento de despertencimento a um território é fartamente compartilhado em vários filmes aqui escolhidos. Em The element of crime, o dinamarquês Lars von Trier conta a história de um policial britânico expatriado no Cairo, enquanto desenha, durante o filme, uma ideia da Europa como distopia e irrealidade. Já a francesa Claire Denis, cuja infância em grande parte se passou na África colonial, parte de um relato semiautobiográfico, em Chocolat, para, com seu “olhar intruso” (expressão emprestada de Denilson Lopes), explorar as fissuras (praticamente abismos!) que demarcam o ambíguo relacionamento entre o europeu e os nativos africanos, tanto no passado quanto no presente pós-colonial. Essa questão também irá se desdobrar por toda a obra do português Pedro Costa e sua investigação do universo das comunidades de imigrantes cabo-verdianos nas periferias de Lisboa, cujo sentido do exílio traduz-se num riquíssimo estranhamento visual e corporal, que encontra suas origens no primeiro longa do diretor, O sangue (embora a temática da imigração ainda esteja ausente nesse filme).

Já o palestino Elia Suleiman, por sua vez, parte da situação híbrida de seu povo (cuja nação sequer é reconhecida pela comunidade internacional, relegado à paradoxal condição oficial de “árabe-israelense”) para discutir, com um humor que em muito se aproxima do norte-americano Buster Keaton, a apropriação da causa palestina pelo nacionalismo árabe – não à toa, Chronicle of a disappearance é uma coprodução Israel-França, o que muito evidencia esse entre-lugar, que, acima de tudo, assume-se como uma postura  política de contestação das estruturas de poder no Oriente Médio.

A questão da mulher e da criança na sociedade iraniana é outro entre-lugar, explorado dessa vez pelos filmes de Jafar Panahi. Se O balão branco, contudo, prefere se concentrar num tom de doçura, revê-lo à sombra de obras mais recentes e contundentes do diretor, como Fora de jogo e O círculo, pode nos permitir outras interpretações do que aparentemente assume-se como uma fábula minimalista.

Um contraponto interessante a essas perspectivas está nos protagonistas marginais dos primeiros filmes de Gus Van Sant ambientados em Portland, no noroeste dos EUA (como Mala noche, por exemplo), em que o desajuste social traduz-se não só num outro olhar da câmera sobre o mundo (potencializado pelos planos detalhes) mas também por um desejo de errância, em busca de um território ao qual se possa finalmente pertencer.

Van Sant vai se posicionar, nesse momento inicial de sua carreira, numa dissecação do reverso do american dream (também assumido aqui como distopia) que pauta boa parte do cinema norte-americano independente dos anos 80, como por exemplo, o filme de estreia dos irmãos Coen, Gosto de sangue, que também faz uso de outra estratégia característica do mundo contemporâneo: a adoção de um cinema que se autorreferencia, ao dialogar com sua própria história e sua rica galeria de ícones. No caso do filme dos Coen, temos uma espécie de releitura do noir, gênero que também ecoa, ainda que de forma mais sutil, no primeiro longa de Von Trier.

O diálogo com a linguagem dos mass media, em especial a estética publicitária que começa a se esboçar em Conflito mortal, de Wong Kar-wai, cineasta de Hong Kong, também é bastante sintomático de um contexto global em que as fronteiras culturais se reescrevem a todo momento, num jogo de espelhos com a tradição norte-americana do filme de gângster (tanto na década de 30 quanto a releitura proposta por Scorsese nos anos 70). O universo do filme policial também aparece em Os matadores, de Beto Brant, aliado aqui à não-linearidade temporal (mais uma característica da experiência contemporânea) e à exploração das particularidades regionais da região fronteiriça entre Brasil e Paraguai.

Mysterious object at noon, de Apichatpong Weerasethakul, faz confundir os domínios do real e do ficcional para enredar o espectador numa experiência francamente sensorial pelas matas tailandesas. Temos aqui o ponto de partida de uma filmografia autoral que, com sua opção narrativa calcada em uma forte elaboração de ambiências, coloca-se em sintonia com a obra de alguns realizadores contemporâneos que compartilham de uma certa “estética do fluxo”. Ao mesmo tempo em que Weerasethakul aproxima-se de um conjunto transnacional de obras e cineastas, seus filmes descolam-se totalmente da tradição cinematográfica de seu próprio país.

Algumas vezes, o discurso desses cineastas é revestido por uma postura geracional que lança novas provocações às disjunturas de seus cinemas nacionais. Mundo Grua, de Pablo Trapero, realizado em 1999, é um dos marcos cruciais do Nuevo cine argentino, e Pickpocket, de Jia Zhang-ke (que depois se tornaria um dos mais ávidos críticos da China globalizada), é uma obra central no contexto da Sexta geração chinesa. Em comum, ambos os filmes têm um formato de produção enxuto (equipes reduzidas, filmagens em locação e baixo orçamento), um aguçado senso de observação do cotidiano de seus países (guardadas, naturalmente, as radicais opções estéticas de cada realizador) e uma opção assumidamente política por um circuito de exibição/distribuição underground ou voltado para os festivais internacionais (no caso chinês, para driblar a forte censura do governo; no argentino, pela própria busca de um espaço de circulação dessas obras), e por uma não-identificação com as linguagens e temáticas que marcaram o cinema das gerações que lhes antecederam (em especial, o excesso de metaforizações para se falar da própria realidade social de cada país, algo impensável para os momentos políticos então vivenciados).

Por mais que as realidades chinesa e argentina desta década sejam bastante diferentes entre si, certos paralelos reforçam as disjunturas que demarcam o contexto global, e as particularidades das questões que emergem em cada região. Nesse caso, a emergência de novas vozes, de novos filmes é essencial para questionar tais experiências. E nisso, os filmes de estreia são verdadeiras radiografias, tanto globais quanto locais, de um estado das coisas em acelerada transformação.

Erly Vieira Jr. é doutorando em Comunicação e Cultura pela UFRJ e professor do Departamento de Comunicação Social da Ufes. Também é escritor e curta-metragista.